Santo Estevão e o martírio nos nossos dias
“Senhor, quando chegarem as humilhações, ajuda-me a sentir que estou seguindo atrás de ti, no teu caminho”
(Papa Francisco. Gaudete et Exsultate, nº 119)
Infelizmente, palavras como sacrifício, renúncia, abnegação e, até mesmo martírio, embora façam parte da Espiritualidade Cristã e tenham suas raízes na Palavra de Deus, foram colocadas de lado ou substituídas por ideias que transformaram a religião cristã em uma “filosofia de vida”, na qual Deus concede o bem-estar e a prosperidade como sinais de bênçãos. Nesse pensamento, Deus se tornou um realizador dos caprichos humanos e, toda a radicalidade exigida para o seguimento de Jesus de Nazaré, foi revestida por um marketing religioso em que não se contempla mais os valores evangélicos que devem ser assumidos pelos discípulos e discípulas de Jesus.
Hoje, busca-se mais uma religião das facilidades, que “em vez de valorizar temas bíblicos tradicionais de martírio, auto sacrifício [...], valoriza a fé em Deus como meio de obter felicidade, saúde física, riqueza e poder terrenos. Em vez de glorificar o sofrimento, tema tradicional no cristianismo, enaltece o bem-estar do cristão neste mundo” (ORO, Ari, Pedro. Neopentecostalismo: dinheiro e magia. Florianópolis: Ilha, 2001). E, assim, a religião que praticamos vai ficando, cada vez mais, parecida com as nossas vontades do que com os ensinamentos de Jesus Cristo.
Embriagados por essas seduções, esquecemos que a própria história do cristianismo foi regada pela entrega total de pessoas até a morte, por causa do Projeto do Reino de Deus. O primeiro, sem dúvida, a dar o maior exemplo foi Jesus de Nazaré: é necessário que o Filho do Homem sofra muito, seja rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas, seja morto e ressuscite ao terceiro dia” (Lc 9, 22). Só um Deus ferido por amor é digno de fé!
No seguimento do galileu, os apóstolos e tantos outros, homens e mulheres, foram até as últimas consequências por causa do nome de Jesus. Um bom exemplo disso é a narrativa trazida por Lucas: “chamaram de novo os apóstolos e açoitaram-nos com vara. E, depois de intimá-los a que não falassem mais no nome de Jesus, soltaram-nos. Quanto a eles, saíram do recinto do Sinédrio regozijando-se, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 5, 40-41).
É preciso tomar consciência de que, vivendo segundo o Evangelho, encontraremos muitas oposições, difamações perseguições e ataques violentos, pois a Palavra de Deus, de modo especial os gestos e os exemplos de Jesus, desconcertam os poderes e os poderosos deste mundo que vivem para se manter no poder às custas dos mais fragilizados e do sangue daqueles que se opõem às suas ambições desmedidas. O discípulo do Senhor precisa estar preparado: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro, me odiou a mim” (Jo 15,18).
No dia 26 de dezembro, a Igreja faz memória festiva de Estevão, o protomártir, ou seja, o primeiro a derramar o sangue por causa de Jesus. E seguindo os passos do seu Senhor que, na cruz, pediu pelos seus algozes; Estevão, diante dos homens que, vorazes, esperavam para apedrejá-lo, fez a seguinte oração: “Senhor Jesus, recebe meu espírito. Senhor, não lhes leve em conta este pecado” (At 7,59-60).
Com santo Estevão, inicia-se uma linda trajetória de mártires que confirmaram a fé com a oferta da própria vida, testemunhando que em Jesus, Deus se fez homem para abrir ao Homem o Reino dos céus. A memória de Estevão lembra a nós cristãos que “nunca se deve separar o compromisso social da caridade do anúncio corajoso da fé” (Papa Bento XVI. Audiência Geral: Estevão, o protomártir. 10 de janeiro de 2007).
Todavia, quando falamos de sacrifício e martírio, não podemos cair na “teologia de um Deus sádico” que se agrada do sofrimento humano. Não estamos defendendo e nem pregando uma espiritualidade masoquista, como se a dor e as lágrimas dos filhos de Deus fossem prazerosas para Ele. Quando falamos de dificuldades e perseguições, nas palavras do Papa Francisco, “fala-se, porém das perseguições inevitáveis, não daquelas que nós próprios podemos provocar com um modo errado de tratar os outros” (Papa Francisco. Gaudete et Exsultate, nº 93).
A cruz que precisamos abraçar (cf. Lc 9,23), por vezes carregada de perseguição, é a consequência do próprio seguimento, pois ela só pode ser entendida na sua profundidade e beleza a partir do seguimento fiel a Jesus Cristo. Em outras palavras, na aplicação do Evangelho na sociedade, forças contrárias vão se levantar, pois é “impossível solidarizar-se com os que sofrem e buscar sua felicidade e libertação, sem sofrer a reação dos poderosos” (PAGOLA, Antônio. É bom crer em Jesus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016).
Sabemos que, nos tempos hodiernos, em muitos lugares do mundo professar a fé cristã requer o heroísmo dos mártires. Não precisamos ir muito longe, basta lembrarmos da Irmã Dorothy (morta por defender os fragilizados na Amazônia), Dom Oscar Romero, bispo de El Salvador (morto por denunciar a ditadura em seu País); e tantos outros que, católicos ou não, deram a vida pelo Evangelho, manifestado no amor aos irmãos, preferencialmente os mais pobres.
Por fim, nos dias atuais, o martírio é vivido de diversas formas e maneiras, como bem nos lembra o Papa Francisco, já citado nesta reflexão: “não me refiro apenas às situações cruentas de martírio, mas às humilhações diárias daqueles que calam para salvar a sua família, ou evitam falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar, escolhem as tarefas menos vistosas e às vezes até preferem suportar algo de injusto para oferecê-lo ao Senhor” (Papa Francisco. Gaudete et Exsultate, nº 119).
Inspirados por essas grandes personagens da história cristã, sejamos nós também corajosos anunciadores de Jesus, vivendo de forma coerente a nossa fé e, com o testemunho da própria vida, estejamos prontos a responder a quem quer que nos pergunte sobre a razão da esperança (Cf. 1Pd 3,15), que mora em nosso coração. “Abraçar diariamente o caminho do Evangelho, mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade”! (Papa Francisco. Gaudete et Exsultate, nº 94).
Pe. Diego Nascimento Silva
Lecionou 'Catequese' para a turma do 1º ano do curso de Teologia, no segundo semestre de 2020. É mestrando em Teologia Prática, com ênfase em ecumenismo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Participa do Grupo de Pesquisa 'Religião e Política no Brasil Contemporâneo'' (PUC-SP/CNPQ). Atualmente é vigário paroquial na Basílica de Nossa Senhora da Penha, setor Cangaíba.